O longa-metragem “Dogville” (2003) faz parte de uma trilogia, composta pelos filmes “Manderlay” (2005) e “Washington” – este último, teoricamente, ainda por vir – que intenta contar a história dos EUA.
O filme trata de inúmeros temas, sem que possa ser reduzido a uma simplória “representação da maldade humana”.
Pretendo, neste artigo, traçar alguns aspectos da obra, sendo certo que há muito mais por trás de sua genialidade, do que certamente fui capaz de elucidar aqui.
Porém, aqui vai minha tentativa!
Sinopse
O filme, passado nos anos 30, mostra os acontecimentos que se sucedem em uma pacata vila, chamada “Dogville”, situada nas Montanhas Rochosas. É lá que Grace (Nicole Kidman), uma bela desconhecida, busca refúgio, ao tentar fugir do que parecem ser gângsters.
Com a ajuda de Tom Edison (Paul Bettany), auto-intitulado porta-voz da cidade, Grace é refugiada pelos demais habitantes.
Sua estadia na cidade funciona, no início, como uma espécie de “estágio probatório”, já que os moradores ainda votariam se ela poderia ou não ficar.
A fim de mostrar sua gratidão e provar ser útil à comunidade, Grace passa a fazer pequenos serviços, em troca de sua estadia.
Após esse período, e caindo na graça dos moradores, a permanência de Grace é aprovada por unanimidade.
No entanto, quando a procura por ela se intensifica, os moradores exigem algo mais em troca, diante do risco que seria escondê-la.
Direção, cenário e filmagem
O longa, dirigido por Lars von Trier, é todo filmado em uma espécie de galpão, iluminado artificialmente, e as residências e ruas são delimitadas através de desenho em giz no chão.
A ambientação criada parece um grande cenário de teatro, no qual dá para ver todos os personagens em movimento o tempo todo, mesmo quando não estão em cena.
É incrivelmente simples, porém funciona surpreendentemente bem!
Temos ainda a filmagem feita com a clássica câmera na mão, marca registrada do diretor, que dá aquela sensação de imagem tremida, sabem?
Em outros momentos, as cenas são filmadas em plongèe, quando se quer mostrar um plano maior da vila.
Retrato da sociedade em “Dogville”
– ALERTA DE SPOILERS A PARTIR DAQUI –
“Dogville” traz uma comunidade presa em seu próprio mundo e que ignora qualquer outro evento exterior.
Esse aspecto tem por objetivo retratar a própria sociedade norte-americana, que também abstrai todo o universo que extrapola os limites da fronteira do país.
Inclusive, a sociedade norte-americana acredita deter uma moral essencialmente ilibada e ser salvadora do resto do mundo (“destino manifesto”), ignorando seus vícios e desejos mais espúrios.
Em outra mão, temos também aqui a presença do intelectual, que almeja uma sociedade ética e livre de pensamentos mesquinhos.
Ainda assim, fica prisioneiro de suas próprias teorias, uma vez que nunca consegue romper definitivamente com os dogmas sociais.
Nesse sentido, temos a comunidade, representando a burguesia, e o personagem Tom, representando essa intelectualidade.
Obs.: O nome inteiro de Tom é “Thomas Edison Jr”, inventor da lâmpada. Estaria o diretor brincando com ideia de um indivíduo que tenta levar a luz ao resto da sociedade?
Jogo de interesses e a origem da corrupção
Após a chegada de Grace, aparentemente fugitiva de gangsters e do Sistema, Tom tenta colocar suas crenças humanistas em prática.
Para isso, convence o restante dos moradores da vila a praticarem a empatia e a compaixão, ao acolherem Grace na comunidade.
O interessante é que os moradores, ao aceitarem Grace, não o fazem pela razão principal, que seria ajudar altruisticamente um indivíduo.
Pelo contrário, o fazem pensando na boa autoimagem que assumiriam ao ajudar, culminando em meras satisfações egoicas.
Isso me lembra muito as pessoas que adotam um “discurso do like” e se ocupam mais da imagem que querem passar de si, em detrimento do conteúdo de suas postagens. Anyway…
Inicialmente, tudo parece funcionar bem e Grace está cada vez mais inserida no meio. Entretanto, com o passar do tempo e após a chegada, na cidade, de acusações contra Grace, os moradores passam a mostrar gradativamente “seus dentes”.
Ao final, já estão se aproveitando da força de trabalho de Grace, em razão de sua condição vulnerável de fugitiva.
Tom parece representar o sopro de esperança do filme, por continuar amigo e fiel a Grace.
Ocorre que, como fica claro no decorrer da história, nem mesmo aquele que se apresenta como o baluarte da ética e do humanismo mantém essa face por muito tempo, quando exposto à pressão da sociedade em que se insere.
Fora que todas as teorias discutidas pelos intelectuais costumam ficar no campo das utopias, posto que são encaradas através de uma realidade inexistente.
A promoção dessas ideias não encontra lugar em uma sociedade corrompida, mesmo que essa corrupção seja velada.
Esse é o caso de “Dogville”, já que a chegada de Grace foi o estopim para que a real face de sua pequena burguesia mostrasse suas garras e seus dentes.
Crítica orwelliana em “Dogville”
Além disso, a comunidade acredita no Sistema, o qual, comprado pelos grandes poderosos, criou falsas ilações sobre Grace.
Ainda que possuísse provas inequívocas de sua inocência, uma vez que Grace estava na comunidade o tempo inteiro, durante a ocorrência dos crimes, a ela imputados, a vila se voltou contra ela.
Com isso, monta-se, em “Dogville”, um mundo orwelliano, em que o governo constituído, através da falsificação da história, que manipula a sociedade.
Por conseguinte, os membros dessa sociedade, influenciados pelas falsas histórias, passam a exercer sua “longa manus”, nos lugares onde os aparatos de controle do Sistema não alcançam.
“O opressor não seria tão forte, se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos.”
Inclusive, essa situação é muito comum em nossa realidade, quando a classe média, atormentada pelas famosas “fake news”, assume atitudes esquizofrênicas em virtude da instalação de uma histeria coletiva.
Tal comportamento, em nossa história global, foi responsável por alavancar ditaduras, guerras, xenofobismo e uma sorte de questões sociais.
Tudo isso tem origem na própria engrenagem governamental de produção de inimigos, através do conhecido mecanismo propagandista goebbeliano.
A própria Guerra do Iraque, por exemplo, fez uso da opinião pública da sociedade americana manipulável, para seus interesses veladamente estratégicos na invasão.
Um reflexo da hipocrisia
A comunidade encontra, na vulnerabilidade de Grace, o respaldo para seus atos cada vez mais cruéis.
A condição de forasteira de Grace – necessitada de sigilo e proteção – é o receptáculo perfeito para que os moradores passem a tirar proveito dessa situação.
Dessa forma, o filme nos faz refletir que, bastando possuir algum tipo de poder sobre o outro, o ser humano mostra a ruindade existente em si.
Talvez o momento mais interessante do filme seja quando Grace é presa pelo pescoço, a uma roda de ferro, após tentar fugir clandestinamente da cidade, por não aguentar mais os maus-tratos que vinha sofrendo.
Ela se refere àquilo como “castigo”, enquanto o pai de Tom a corrige, preferindo não usar aquela palavra, já que eles não seriam capazes de fazer esse tipo de mal.
Como uma maçã podre envernizada, aquela sociedade rotula seus atos, meramente pela escolha de palavras, e não em razão do conteúdo em si. Isso é um ponto muito revelador da hipocrisia em que todos ali estão inseridos.
Vemos também que a fragilidade dos valores da sociedade é tamanha, que apregoa a obediência à lei, mas logo é ela mesma a responsável por sua transgressão.
Tão logo seus interesses sejam postos em questão, a vila será capaz de escravizar um ser humano, em todos os sentidos, e não entregar Grace às autoridades, enquanto puder extrair algo dela.
Nesse ínterim, Tom também assume novos contornos, corrompendo-se da mesma forma que seus pares.
Por consequência, o espectador percebe que não há mais esperança na humanidade, uma vez que aquele que parecia ser o único reduto de decência acaba por cair em desgraça.
O espectador não se salva
O desfecho humanista para o filme resta, assim, anulado, emergindo, pelo contrário, um sentimento de vingança dentro do próprio espectador.
A partir do instante em que Grace demonstra ter mais poder do que se imaginava, passamos a desejar que ela o utilize para subjugar aquela comunidade. E é isso que nos iguala àqueles que tanto criticamos durante o filme.
Essa questão é particularmente curiosa, pois a todo momento sentimos raiva dos moradores por abusarem de Grace, porém somos capazes de desejar o abuso de todos os que foram injustos.
Desse modo, toda essa violência – da qual ilusoriamente buscamos nos proteger, ao eleger governantes “linhas-duras” – está dentro de nós, bastando a CNTP para se manifestar.
Isso revela o quanto os indivíduos são essencialmente hipócritas, capazes de fazer uso de violência para acabar com a própria violência.
Enfim, é dada a decisão nas mãos de Grace, do que fazer. As alternativas são várias, diante de tanto poder que, junto de Grace, foi colocado em nossas mãos. E que agora pode tomar forma, caso Grace assim decida.
Enquanto era atiçada por seu pai a se vingar, ele pergunta a ela: “será que a atitude daqueles moradores foi o melhor que podiam fazer?”
Diferentemente de Jesus, quando interpelado por Deus, Grace não perdoa seus iguais e impõe sua vingança, exterminando todos da cidade.
Com isso, satisfaz o desejo de vingança do próprio espectador e mostra que qualquer um tem a maldade dentro de si, bastando o poder para a manifestar.
Afinal, o sonho do oprimido é virar opressor, certo?
Falência da religião
Os espectador, após o filme direcioná-lo a uma vontade inevitável de vingança, vê-se diante de um fato consternador.
Mesmo aquele indivíduo, cuja moral seja edificada sobre os pilares do ensinamento cristão de perdão, demonstraria essa sede por vingança. Desafio qualquer um que venha a assistir a não sentir o mesmo!
Através dessa epifania provocada pelo filme, acredito que a intenção seja revelar a falência da religião, enquanto instituição moral.
Isso porque os preceitos cristãos, em um momento de extrema emoção, são incapazes de moldar o pensamento humano, na distinção entre certo e errado, bondade e ruindade.
Não apenas isso, é posto em xeque seu funcionamento como mecanismo de controle social, já que a injustiça e a violência correm soltas na sociedade retratada no longa, essencialmente cristã.
No entanto, essa questão não resta preenchida apenas pelo sentimento que o espectador vê nascer dentro de si.
O diretor a evidencia também no momento em que o policial forasteiro pergunta pela Prefeitura e percebemos que não há.
Ou seja, vemos que a única instituição da cidade é representada pelo poder eclesiástico.
Mesmo assim, conforme vimos até então, este sozinho foi incapaz de evitar a pequena degustação de “estado de natureza” que tivemos no filme.
Conclusão sobre “Dogville”
Em “Dogville”, temos a representação, no mínimo, do pensamento rousseauniano, já que este prega, pelo mito do “bom selvagem”, que o homem seria essencialmente bom, mas que a sociedade o corromperia.
Afinal, tudo corria bem até que os cartazes com mentiras sobre Grace rompessem a bolha em que se encontrava a cidade, não é mesmo?
No entanto, acredito que o filme mais satisfaz o raciocínio hobbesiano, de que o homem é essencialmente mau, seu próprio lobo. Movidos pelo medo e pela expectativa de ganhos pessoais, buscamos, no final das contas, o poder sobre os outros.
E isso ainda que acreditemos piamente em sermos bondosos e incapazes de promover o sofrimento do próximo, como era o caso dos moradores da cidade.
Sim, pois os cidadãos da cidade quiseram provar, no início, que não se perfilavam com as acusações de Tom, de que todos ali seriam essencialmente egoístas. (FAIL)
Portanto, sob qualquer ângulo que se queira analisar a obra, ela escancara uma verdadeira descrença na natureza humana – quando vai ao encontro do ideário hobbesiano – e nas instituições – quando desenvolve o pensamento orwelliano.
Até o espectador percebe que sucumbiu à desgraça, retrato de que o ser humano tem em si – e em tudo o que cria – a raiz de sua própria aniquilação.
No final das contas, “Dogville” mostra que um bom filme pode ser feito com minimalismo de cenário, boa iluminação e excelentes atuações.
Tudo isso, amarrado por um roteiro interessante, progressivo e crítico em relação à sociedade e ao próprio indivíduo.
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Escrito por Carolina Morena